Paulo Cesar Antunes

 

Qual a necessidade das advertências bíblicas constantes contra o perigo de apostasia? É provável que, pelo menos alguma vez em suas vidas, todos os cristãos já tenham feito esta pergunta. Tais advertências provocam inúmeras questões como: “Posso realmente perder minha salvação?”, “A advertência é contra um perigo real ou hipotético?”.

 

As advertências contra a apostasia estão intimamente ligadas à doutrina da Perseverança dos Santos. Uma rápida história da doutrina pode ser útil.

 Se alguém quiser ler algo dos primeiros cristãos a respeito da doutrina da Perseverança dos Santos certamente irá se decepcionar. Há uma lacuna muito grande entre a época de Cristo e Agostinho. Mas isto pode ser explicado pelo fato dos primeiros cristãos terem sofrido forte perseguição ou mesmo achado necessário combater algumas heresias que assolavam a Igreja cristã na época.

 Louis Berkhof nos diz que “Quem primeiro ensinou explicitamente esta doutrina foi Agostinho, embora não fosse coerente neste ponto, como se poderia esperar dele, um rigoroso predestinacionista”. A incoerência de Agostinho seria porque, apesar de sustentar que “os eleitos não podem cair de modo que se percam definitivamente”, também “achava possível que alguns que foram revestidos da nova vida e da fé verdadeira possam cair completamente da graça e, por fim, sofrer a condenação eterna”.[1]

 Justo L. González concorda,

Essa doutrina, que parece haver sido proposta primeiramente por Agostinho (354-430), sustenta que aqueles que têm sido predestinados para a salvação perseverarão até o fim.[2]

 Como podemos ver, embora Agostinho tenha sido o primeiro a sustentar a doutrina, ela é um tanto diferente da forma como é atualmente defendida pelos calvinistas.

 De Agostinho até os reformadores temos novamente um longo silêncio. Lutero defendeu a doutrina, mas não ficou muito distante da concepção de Agostinho.

 Lutero cria que o cristão poderia ter certeza acerca do presente estado de graça mas não acerca da perseverança final. Como a tradição católica romana que o precedeu e a tradição wesleyana que o sucedeu, Lutero não via a regeneração como inextricavelmente ligada à salvação final.[3Uma defesa coerente da doutrina só encontramos em Calvino, sendo a partir de então seguido pelas igrejas reformadas. Mas se é certo que os crentes irão permanecer na fé até o fim, qual a necessidade de advertências contra a apostasia?

 Os arminianos não encontram dificuldade na resposta. Comentando Hb 5.11-10.39, I. Howard Marshall diz:

 Há o perigo de que as pessoas possam voltar suas costas para a salvação e, portanto, para o Salvador, não restando nesse caso esperança para elas. Mas, ainda que o perigo seja real, o autor não acredita que esse seja a situação deles e, ao relembrar os sinais da salvação observados nos membros daquela igreja, ele se sente encorajado a continuar com o ensino. Os crentes, por sua vez, devem permanecer na fé e herdar o que Deus prometeu.[4]

 Aos arminianos, portanto, as advertências contra a apostasia são necessárias porque elas nos alertam contra um perigo real. Há verdadeiramente o risco do crente se apostatar da fé.

 Aos calvinistas, no entanto, a questão não é assim tão simples e ela tem sido respondida de diversas maneiras.

 Alguns sugerem que as advertências são contra a perda de recompensas e não contra a perda de salvação.[5]Outros acreditam que elas se referem aos julgamentos disciplinares pelos quais os crentes passam, podendo ou não incluir a morte física mas nunca a condenação eterna, e apelam à morte de muitos judeus no deserto, alegando que eles perderam a vida mas não a salvação (Hb 3.7-19).

 Todavia, estas duas propostas deixam de levar as Escrituras a sério e são combatidas inclusive por muitos calvinistas. Como acreditar que as advertências se referem a perdas de recompensas ou julgamentos disciplinares diante de passagens como Hb 10.26-29?

 Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários. Quebrantando alguém a lei de Moisés, morre sem misericórdia, só pela palavra de duas ou três testemunhas. De quanto maior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue da aliança com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?

 O autor de Hebreus afirma um castigo muito mais severo àqueles que desprezam a Cristo. Se antes de Cristo alguém era punido com a perda da própria vida, mas não da salvação, que castigo mais severo seria este? Parece claro que o autor tem a condenação final em vista, muito mais severa a quem despreza o Filho de Deus, e, além do mais, é improvável que os judeus no deserto, se salvos, foram punidos apenas com a morte física.

 Outros calvinistas acreditam que uma melhor resposta seria que essas advertências são meios usados por Deus para preservar os seus eleitos:

 O principal propósito dessas passagens, entretanto, é induzir os homens a desejosamente cooperarem com Deus para o cumprimento de seus propósitos.[6]

 Essas advertências consideram a questão toda a partir do lado do homem e seu propósito é sério. Elas incitam os crentes ao exame de si mesmos e servem de instrumentos para mantê-los no caminho da perseverança. Não provam que alguns dos seus destinatários irão se apostatar da fé, mas simplesmente que o uso dos meios é necessário para impedi-los de cometer este pecado.[7]

 Esta tentativa sofre igualmente de algumas dificuldades. Seria legítimo perguntar: se as advertências não fossem dadas, os crentes iriam apostatar-se? Se a resposta for afirmativa, então a doutrina da Perseverança dos Santos é falsa. Se a resposta for negativa, então qual seria mesmo a necessidade de tais advertências, visto que, sendo dadas ou não, os crentes não podem apostatar-se?

 O segundo problema é que, como diz Sproul, “parece frívolo exortar pessoas a evitar o impossível”.[8] Se a apostasia é uma impossibilidade aos crentes, então não há nenhuma necessidade de se alertar contra ela.

 Esta resposta, ainda, vai de encontro à afirmação de que a doutrina da Perseverança dos Santos traz conforto e segurança aos crentes. Boettner diz:

 Quando Deus mantém um alma com medo de cair, de forma alguma isto é prova de que Deus em seu propósito secreto pretende permitir que ela caia. Estes medos podem ser o próprio meio que Deus planejou para impedi-la de cair.[9]

 Boettner parece não enxergar que está diante de uma contradição. Ele acredita que Deus transmite segurançaaos crentes com a ideia de que os crentes não podem apostatar-se ao mesmo tempo em que lhes infunde medo a fim de que não caiam em apostasia.

 Também precisamos considerar a sugestão de que “essas advertências consideram a questão toda a partir do lado do homem”, como diz Berkhof. Boettner concorda,

 Há, obviamente, um sentido no qual é possível a apostasia dos crentes, – quando vistos simplesmente em si mesmos, com referência a seus próprios poderes e capacidades, e à parte do propósito ou desígnio de Deus a seu respeito.[10]

 Sobre esta sugestão, cabe a estes teólogos provarem que os autores bíblicos, quando proferiram estas advertências, consideraram “a questão toda a partir do lado do homem”, “com referência a seus próprios poderes e capacidades, e à parte do propósito ou desígnio de Deus a seu respeito”. Não parece ser o caso de nenhuma das advertências contra a apostasia. Nenhuma delas considera o crente entregue a si mesmo, e conclui que, dependendo somente de suas próprias forças, a apostasia é possível. Esta ideia não está nem mesmo implícita em Hb 6.4.6:

 Ora para aqueles que uma vez foram iluminados, provaram o dom celestial, tornaram-se participantes do Espírito Santo, experimentaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da era que há de vir, e [considerando a questão toda a partir do lado do homem… com referência a seus próprios poderes e capacidades, e à parte do propósito ou desígnio de Deus a seu respeito] caíram, é impossível que sejam reconduzidos ao arrependimento; pois para si mesmos estão crucificando de novo o Filho de Deus, sujeitando-o à desonra pública.

 O último problema com esta resposta é que Deus estaria utilizando uma mentira para manter os crentes na fé. Se é verdadeiro que os crentes não podem cair da graça, dizer que eles podem cair para impedi-los de cair não seria um meio honesto de preservá-los na fé.

 Mas uma analogia é oferecida em favor desta hipótese. Boettner diz que “um pai, a fim de obter a cooperação voluntária de uma criança, pode dizer a ela para ficar fora do caminho de um carro que se aproxima, quando o tempo todo o pai não tem a intenção de deixar a criança chegar numa posição onde ela seria ferida”.[11] Esta é uma grande verdade, mas o que Boettner deixa de perceber é que sua analogia leva em consideração um perigo real. Crianças que se desgarram de seus pais podem realmente ser atropeladas. Isto não é uma impossibilidade e casos desse tipo acontecem a todo instante. Já para as advertências contra a apostasia, dizem, são advertências contra um perigo hipotético e não real. Não há a menor possibilidade de um crente se apostatar, ensinam.

 Mas pode ser que Boettner está querendo dizer que, se a criança se desgarrar de seu pai, e depender somente de si mesma, ela pode ser atropelada, e isso confirmaria que os crentes, se entregues a si mesmos, podem apostatar-se. Mas o problema ainda permanece que, dada a doutrina da Perseverança dos Santos, os crentes nunca são entregues a si mesmos, permanecendo sem sentido as advertências contra a apostasia. Quem levaria as advertências a sério sabendo que, dependendo de si mesmos eles podem apostatar-se, mas que nunca são deixados numa situação em que dependem somente de si mesmos?

 Diante de todos esses problemas, as hipóteses de que as advertências contra a apostasia se referem a perdas de recompensas, punições disciplinares ou são meios que Deus se utiliza para manter os crentes em estado de graça deveriam certamente ser abandonadas. Elas não conseguem fazer sentido com as advertências contra a apostasia.


[1] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, (Campinas-SP: Luz para o Caminho Publicações, 1990), p. 549.

[2] Justo L. González, Breve Dicionário de Teologia (São Paulo: Hagnos, 2009), p. 252.

[3] John Jefferson Davis, “The Perseverance of the Saints: A History of the Doctrine”, em Journal of the Evangelical Theological Society [JETS] 34/2 (junho de 1991) p. 213-228.

[4] I. Howard Marshall, Teologia do Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 523, 524.

[5] Charles C. Ryrie, Teologia Básica (São Paulo: Mundo Cristão, 2004), p. 386; Norman Geisler, Eleitos Mas Livres(São Paulo: Editora Vida, 2001), p. 141.

[6] Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination.

[7] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, (Campinas-SP: Luz para o Caminho Publicações, 1990), p. 552.

[8] R. C. Sproul, Eleitos de Deus (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002), p. 138.

[9] Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination.

[10] Idem.

[11] Idem.