Justo Gonzalez – entrevista

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Entrevista com o Historiador dr. Justo Gonzalez

 

Justo Gonzalez ensinou teologia histórica em diversas instituições, entre elas o Seminário Evangélico em Porto Rico, a Escola de Teologia Candler na Universidade Emory, e o Seminário Teológico Columbia. Durante os últimos 30 anos, ele desenvolveu programas de formação teológica para hispanos.

 

Seus diversos livros sobre a história da igreja foram traduzidos para diversas línguas e são amplamente usados em todo o mundo. Entre eles, temos no Brasil a série Uma História Ilustrada do Cristianismo (10 volumes) e Cristianismo na América Latina: uma história, que será lançado no segundo semestre de 2009, também por Edições Vida Nova.

 

Teologia Brasileira: O que o motivou a estudar “história”, especificamente, “história do cristianismo”?

 

Justo Gonzalez: Quando eu era jovem, a matéria que eu mais odiava na escola era história. Eram muitos nomes, muitas datas, muita memória e pouca vida. Mas depois, quando eu fiquei um pouquinho mais velho e comecei a estudar Teologia, vi livros de bons teólogos e os melhores sempre falavam de seus antecessores, de gente que eu não conhecia. Havia um livro muito famoso, A teologia dogmática de Karl Barth, que era um livro muito grande. Quando comecei a ler esse livro, cada página tinha 10, 12 nomes de pessoas que eu não sabia quem eram. Pessoas do século segundo, do século quinze, do século quarto. Naquela época, eu também estudava Filosofia, e logo notei que era impossível estudar Filosofia sem estudar a História da Filosofia. Os cursos de Introdução à Filosofia sempre começam com a Filosofia Grega. Da mesma forma, não é possível estudar Teologia sem conhecer a História da Teologia. Foi isso que me levou a estudar a história do cristianismo. Hoje me interesso mais pela história porque percebo que a História fala da vida dos povos, da vida de homens e mulheres, de quando essas pessoas viviam, as obras que esculpiam. Isso tudo era tão importante para eles como nossa vida é para nós hoje. Por isso não tem nenhuma razão para a História ser algo chato, muito pelo contrário. Você lê um romance histórico, um romance sobre o rei Carlos V e fica muito impressionado porque ali está a história da vida dele.

 

Teologia Brasileira: Existe uma história do cristianismo separada da História?

 

Justo Gonzalez: Existe, mas não deveria existir. Lamentavelmente, a História do cristianismo é escrita com exclusão da História geral da humanidade. No entanto, acho que isso não é bom dos pontos de vista teológico, metodológico e também pedagógico. Não é bom teologicamente porque nosso Senhor é o Senhor da História, toda a História está em suas mãos. É evidente que na história há também pecado, mas Jesus é o Senhor da História e nós aguardamos o fim da História. Logo, não é possível falar da História da humanidade sem falar da História de um Deus que age dentro dessa história. Portanto, não deveria existir duas Histórias. Isso que fazemos nas escolas de separar a História secular não deveria existir. E ao mesmo tempo não é correto, pois a História da Igreja, a vida da igreja tem lugar sempre dentro do contexto da vida geral da humanidade. Você não pode falar da igreja no Brasil, sem falar do Brasil. Você não pode falar das mudanças que têm ocorrido na igreja brasileira nos últimos cinquenta anos, sem falar das mudanças que têm ocorrido na história do Brasil como país inteiro nos mesmos cinquenta anos.

 

Teologia Brasileira: Em termos de pensadores da história cristã, quais as influências mais marcantes em sua história pessoal?

 

Justo Gonzalez:  Ah! São muitas, muitas, muitas. Originalmente, quando eu era mais jovem, as influências mais marcantes foram principalmente Martinho Lutero e Agostinho. Depois, Irineu passou a ser mais importante para mim. Ele foi teólogo e bispo na França do final do século segundo. Outra influência foi Karl Barth. Karl Barth foi um teólogo suíço que protestou veementemente contra o nazismo e que criou uma nova maneira de se fazer Teologia no princípio do século XX, por sinal algo que gerou muita discussão. Além desses que citei, tem também meu pai, minha mãe, minha esposa; todos são teólogos que têm me influenciado muito.

 

Teologia Brasileira: Na sua opinião, o testemunho da igreja cristã tem apresentado uma postura coerente em relação à unidade da igreja?

 

Justo Gonzalez: Coerente sim, mas boa não. É coerente, mas ruim. O testemunho da igreja tem perdido muito por dois motivos, que são ambos negativos. O primeiro é uma divisão constante, segundo a qual cada igreja pensa que fica só no mundo de Deus, que só ela é igreja. Isto é verdade em igrejas grandes e também em igreja muito pequenas; o problema é o mesmo. Outro problema, outro extremo é quando a unidade da igreja se torna algo administrativo, muitas vezes ditatorial, não voluntário. Os dois são problemas, a unidade da igreja não é apenas unidade: um chefe, um papa, um bispo, um grande pastor. Essa postura fez muito mal para o testemunho cristão.

 

Teologia Brasileira: Para o sr., quais seriam hoje as formas veladas de intolerância religiosa?

 

Justo Gonzalez: Muitas não são tão veladas. Naturalmente há intolerância religiosa em todas as religiões e temos de ter cuidado quando falamos em tolerância religiosa entre os cristãos. Há também muita intolerância religiosa entre os muçulmanos, entre os hindus. Agora mesmo um grupo de cristãos tem saído de seus territórios porque os vizinhos estavam matando. O governo diz: “Nós podemos protegê-los, vocês devem regressar às suas casas mas devem ficar em dois para não ter problema”. Isso acontece na Índia agora no século XXI, e principalmente nos países muçulmanos. Agora não acontece com os cristãos. Há muitas e muitas formas de intolerância religiosa. Eu acho que, em nosso contexto particular na America Latina, possivelmente a forma mais velada é a intolerância de alguns chefes, de alguns pastores de igrejas muito grandes que querem que todo mundo pense exatamente o que eles pensam ponto por ponto, de A a Z. Fazem tudo isso para manter o povo, levando-o a fazer o que eles dizem. Isso é intolerância religiosa também. Intolerância religiosa não é um problema só da igreja romana, é um problema de todos os cristãos que acreditam ser possuidores da verdade. O cristão não possui a verdade, a verdade possui o cristão.

 

Teologia Brasileira: Como o sr. avalia o crescimento do cristianismo na América Latina?

 

Justo Gonzalez: Há coisas muito boas, e isso eu não preciso falar porque todo mundo já conhece. Mas há também alguns perigos e problemas: a espuma cresce muito, mas não tem muita sustância; e boa parte do crescimento do protestantismo na América Latina é como uma espuma. Não é a primeira vez que isso é um problema para a igreja. Isso também aconteceu no século quarto e teve consequências nefastas mais tarde. As pessoas não sabem no que creem. Por esse motivo, nós precisamos agora tomar o tempo necessário para trabalhar o discipulado, o ensino, as doutrinas, a teologia, a vida cristã – sobre a prática da vida cristã, sobre a experiência entre a vida cristã e a vida secular, e sobre a diferença entre o sucesso cristão e o sucesso como o mundo entende. Precisamos falar mais disso, de modo que as pessoas que venham para as nossas igrejas verdadeiramente tenham sustância nas suas crenças. Essa [a falta de sustância] é uma das razões por que as pessoas creem em alguém que vem a uma das nossas igrejas com uma doutrina nova ou um texto bíblico achando que isso explica tudo. Esse é um problema do crescimento espumoso.

 

Teologia Brasileira: É dito que a América Latina é um ‘celeiro de missões’. Como o sr. vê essa afirmação?

 

Justo Gonzalez: Possivelmente a coisa mais importante que tem acontecido na igreja cristã em todo o mundo, nos últimos cinquenta, setenta anos, é que os centros do cristianismo têm mudado. Isso não é a primeira vez. No Novo testamento, temos primeiro Jerusalém, depois Antioquia, depois no Mediterrâneo, depois na Europa Ocidental; depois no século XVI com os espanhóis e os portugueses, e no século XIX o centro veio a ser o Atlântico Norte. O eixo do cristianismo estava na linha que vai de Londres até Nova Iorque, e era de lá que saíam os missionários. O que tem acontecido nos últimos anos é que o centro tem mudado. Agora existem mais cristãos no Sul do que no Norte. Isso não se dá somente na América Latina, mas também na África e na Ásia. A Igreja Presbiteriana da Coréia é maior do que sua igreja mãe nos Estados Unidos. Hoje a ilha de Porto Rico envia mais missionários para Nova Iorque do que a igreja de Nova Iorque manda para o restante do mundo. A mudança é enorme. A América Latina, que até a segunda metade do século passado era receptora das missões, tem sido enviadora de missionários para as missões. Isso é muito interessante porque agora as pessoas que pregam o evangelho em Uganda podem ser ingleses, mas podem ser também brasileiros, argentinos, coreanos. As pessoas que pregam aqui no Brasil são os chineses, os coreanos… E as pessoas que pregam na Argentina são uruguaias. Isso é a troca. Troca que é muito maior do que nós vemos no mapa mundial da igreja cristã.

 

Teologia Brasileira: Em sua obra Cristianismo para América Latina, o sr. argumenta que há uma relação mutuamente formadora entre o cristianismo e o contexto latino-americano. Poderia nos falar um pouco sobre essa sua tese?

 

Justo Gonzalez: Primeiramente, eu não leio o que escrevo [risos]. Não há dúvida de que o cristianismo tem feito um grande impacto na América Latina. O catolicismo romano implantado pelos espanhóis e pelos portugueses está na base da formação religiosa e cultural do continente. Há também as influências indígenas, as influências africanas, mas o ingrediente principal é o que vem da Ibéria, o cristianismo ibérico. Mas o cristianismo que vem à América Latina também se transformou na América Latina, de muitas maneiras. Não somente o cristianismo espanhol e português exerceu influência sobre os indígenas; a religião dos indígenas também influenciou o cristianismo que se desenvolveu. Eu falava hoje sobre a virgem de Guadalupe. Ela é, originalmente, uma deusa asteca. Há também os africanos, que são elementos africanos latino-americanos e não africanos da África – como os escravos brasileiros que desenvolveram sua religião da África no Brasil. Isso não se dá somente na igreja católica, mas também na igreja protestante. Eu tenho amigos antropólogos e sociólogos que fazem comparações entre a maneira que a religião e o culto funcionam dentro das comunidades originalmente escravas e as maneiras que funcionam nas novas igrejas pentecostais. Mesmo que não vejamos, em todo o mundo branco, há uma influência africana que fica ainda lá. Agora, especialmente porque a América Latina é um centro de missões, esse cristianismo da América Latina também vai para o resto do mundo. A América Latina aceita o resto do mundo. Hoje, nos Estados Unidos, mais da metade dos católicos romanos são latinos; nas igrejas pentecostais são entre 20 a 30 por cento; nas igrejas mais antigas, as chamadas históricas, o crescimento se dá entre os latinos e os coreanos. O cristianismo da América Latina tem ido para todo o mundo.

 

Teologia Brasileira: Como o sr. vê a produção teológica na América Latina?

 

Justo Gonzalez: Bem há seus pontos claros e seus problemas. Primeiramente, é preciso pensar na troca que tem acontecido nos últimos cinquenta anos; e não se deve pensar que a situação presente é a situação de sempre. Eu vejo coisas muito positivas. Deixe-me contar uma história. Quando eu estava no seminário, o primeiro livro de História da Igreja que eu estudava era um livro grande de mil e quinhentas páginas, com letra muito pequena, em inglês, porque não existia em espanhol. Era um livro que mostrava que depois da Reforma o que interessava era a Europa do Norte, os alemães, os ingleses e, depois, os americanos. Eu disse ao meu professor de História que ele deveria fazer um livro de História com o nosso ponto de vista. E ele disse: “Meu filho, isso jamais acontecerá, porque o mercado latino-americano é muito pequeno, e isso não é possível”. Hoje esse livro que vocês publicam é o principal em todos os seminários dos Estados Unidos. É um livro que não era possível há cinquenta anos. Essa é uma mudança enorme. Se nós virmos o que existe e pensarmos ser um retrato do presente, podemos falar do que falta, mas, se olharmos o que vem acontecendo nos últimos trinta, quarenta anos, temos muitas razões para ter esperança. Para mim, o que é mais importante é que, teologicamente, a igreja latino-americana começa a ser ela mesma. E sua teologia tem o mesmo respeito da teologia que vem do estrangeiro. A teologia do estrangeiro é boa, mas não é nossa. Ela é boa no estrangeiro. Mas é preciso que o povo latino-americano reflita sobre a sua fé e produza uma teologia latino-americana. Isso já acontece, mas, se você vir os hinos musicados, por exemplo, muitos são traduzidos do alemão, e poucos são produções espanholas ou portuguesas. Acho que temos muito ainda para percorrer, mas já temos percorrido o caminho. Por isso, não devemos ser pessimistas, nem tampouco podemos ficar contentes, porque ainda há uma grande parte do nosso povo que vê algo, que vem diretamente dos Estados Unidos ou de um programa de televisão norte-americano, como algo vindo diretamente do céu.

 

Teologia Brasileira: De que forma o cristianismo contribuiu e pode vir a contribuir para a história da América Latina?

 

Justo Gonzalez: O cristianismo contribuiu de várias formas. Como falamos antes, o cristianismo é um dos elementos principais da cultura latino-americana. E não somente no aspecto religioso, mas também no idioma que os cristãos trouxeram. O cristianismo também contribuiu com a liberdade religiosa – especialmente o protestantismo – porque o movimento protestante foi um movimento em prol da liberdade. Muitos dos latino-americanos se não eram protestantes eram pelo menos simpatizantes dos protestantes. E depois, quando veio o liberalismo, muitos dos governantes liberais utilizaram a igreja para promover a educação e a liberdade de pensamento. Isso aconteceu em muitos lugares. Mas há o lado negativo: existe uma forma de cristianismo que é um dualismo platonista, que defende que só o espiritual é que é bom. Esse tipo de cristianismo tira as pessoas da realidade social e não permite que elas façam a contribuição que poderiam fazer. Eu acho que o cristianismo pode contribuir muito, o grande problema é que as igrejas pensam que sua contribuição é governar, é mandar, é ter poder. Hoje há deputados, prefeitos, alguns países têm presidentes evangélicos. Se a igreja pensa em mandar ela acaba fazendo aquilo que o catolicismo romano fez. Mas, se a igreja entende que ela tem implicações para a vida total do povo, ela apoia as iniciativas do país que sejam boas.

 

Entrevista concedida para o site Teologia Brasileira, durante o 1º Congresso Hagnos e Servo de Cristo 2009

Fonte:  Arminianismo

Uma Análise do Calvinismo

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____________________________________________________________________________  Philip Schaff

(History of the Christian Church, Volume 7, Capítulo XIV, § 114)

 

Não podemos deixar este importante assunto sem examinar o sistema calvinista da predestinação à luz da experiência cristã, da razão e do ensino da Bíblia.

 

O Calvinismo, como vimos, começa de um duplo decreto de predestinação absoluta, que precede a criação, e é o plano divino da história humana. Este plano inclui os estágios sucessivos da criação do homem, uma queda e condenação universal da raça, uma redenção e salvação parcial, e uma reprovação e perdição parcial: tudo para a glória de Deus e para a demonstração de seus atributos de misericórdia e justiça. A história é somente a execução do propósito original. Não pode haver nenhuma falha. O início e o fim, o plano imutável de Deus e o resultado da história do mundo, devem estar em harmonia.

 

Devemos lembrar logo no início que temos que lidar aqui com nada menos do que a solução do problema do mundo, e devemos abordá-la com reverência e um senso humilde de limitação de nossas capacidades mentais. Estamos situados, por assim dizer, ante uma montanha cujo topo está perdido nas nuvens. Muitos que ousaram subir ao cume perderam sua visão nos ofuscantes montes de neve. Dante, o mais profundo pensador entre os poetas, considera o mistério da predestinação distante demais dos mortais que não podem ver “a primeira causa em sua totalidade,” e profunda demais até para a compreensão dos santos no Paraíso, que desfrutam a visão beatífica, todavia “não conhecem todos os eleitos,” e estão satisfeitos por “desejar o que quer que Deus queira.”[1] O próprio Calvino confessa que, “a predestinação de Deus é um emaranhamento, do qual a mente do homem de forma alguma consegue desprender-se.”[2]

 

A única saída do emaranhamento é o fio de Ariadne do amor de Deus em Cristo, e este é um ainda maior, mas mais santo mistério, que podemos adorar antes que compreender.

 

OS FATOS DA EXPERIÊNCIA.

 

Encontramos em todo lugar neste mundo os traços de um Deus revelado e de um Deus oculto; revelado o suficiente para fortalecer nossa fé, oculto o suficiente para testar nossa fé.

 

Estamos cercados de mistérios. No reino da natureza vemos os contrastes de luz e trevas, dia e noite, calor e frio, verão e inferno, vida e morte, vales florescentes e desertos infecundos, pássaros canoros e serpentes venenosas, animais benéficos e bestas vorazes, a luta pela existência e a sobrevivência dos mais aptos. Passando para a vida humana, descobrimos que um homem nasce para a prosperidade, outro para a miséria; um rei, outro mendigo; um forte e saudável, o outro um paralítico desamparado; um gênio, o outro um ignorante; um inclinado à virtude, outro ao vício; um filho de um santo, o outro de um criminoso; um na escuridão do paganismo, outro na luz do Cristianismo. Tanto os melhores quanto os piores homens estão expostos a acidentes fatais, e nações inteiras com sua prole inocente são assoladas e dizimadas pela guerra, pestilência e fome.

 

Quem pode explicar todos estes e mil outras diferenças e problemas desconcertantes? Eles estão além do controle da vontade do homem, e devem ser achados na vontade inescrutável de Deus, cujos caminhos estão além da nossa compreensão.

 

Aqui, então, está a predestinação, e, aparentemente, uma dupla predestinação para o bem ou mal, para a alegria ou miséria.

 

Pecado e morte são fatos universais que ninguém em sã consciência pode negar. Eles constituem o problema dos problemas. E a única solução prática do problema é o fato da redenção. “Onde o pecado abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado veio a reinar na morte, assim também viesse a reinar a graça pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 5.20, 21).

 

Se a redenção fosse tão universal em sua operação quanto o pecado, a solução seria mais satisfatória e mais gloriosa. Mas a redenção é somente em parte revelada neste mundo, e a grande questão permanece: O que será da imensa maioria dos seres humanos que vivem e morrem sem Deus e sem esperança neste mundo? Este terrível fato deve ser achado no eterno conselho de Deus ou na livre agência do homem? Aqui está o ponto onde o Agostinianismo e o Calvinismo discordam do Pelagianismo, do Semipelagianismo, do Sinergismo e do Arminianismo.

 

O sistema calvinista envolve uma verdade positiva: a eleição para a vida eterna pela graça livre, e a inferência negativa: a reprovação para a morte eterna pela justiça arbitrária. A primeira é a força, a última é a fraqueza do sistema. A primeira é praticamente aceita por todos os crentes verdadeiros; a última sempre foi, e sempre será, rechaçada pela grande maioria dos cristãos.

 

A doutrina de uma eleição graciosa é tão claramente ensinada no Novo Testamento quanto qualquer outra doutrina. Consulte passagens como Mt 25.34; Jo 6.37, 44, 65; 10.28; 15.16; 17.12; 18.9; At 13.48; Rm 8.28-39; Gl 1.4; Ef 1.4-11; 2.8-10; 1Ts 1.4; 2Ts 2.13-14; 2Tm 1.9; 1Pe 1.2. A doutrina é confirmada pela experiência. Os cristãos traçam todas as suas bênçãos temporais e espirituais, suas vidas, saúde, e força, sua regeneração e conversão, todo bom pensamento e obra à graça imerecida de Deus, e esperam ser salvos unicamente pelos méritos de Cristo, “pela graça, por meio da fé,” não pelas suas próprias obras. Quanto mais avançam na vida espiritual, mais gratos se sentem a Deus, e menos inclinados a reivindicar algum mérito. Os maiores santos são também os mais humildes. Sua teologia reflete o espírito e atitude de oração, que se apóia na convicção de que Deus é o livre doador de todo bem e dom perfeito, e que, sem Deus, não somos nada. Diante do trono da graça todos os cristãos podem ser chamados de agostinianos e calvinistas.

 

O grande mérito de Calvino é ter apresentado esta doutrina da salvação pela livre graça mais vigorosa e claramente do que qualquer teólogo desde os dias de Agostinho. Ela tem sido o tema eficaz dos grandes pregadores e escritores calvinistas na Europa e América até o dia de hoje. Howe, Owen, Baxter, Bunyan, South, Whitefield, Jonathan Edwards, Robert Hall, Chalmers, Spurgeon, foram calvinistas em seus credos, embora pertencendo a diferentes denominações, – Congregacional, Presbiteriana, Episcopal, Batista, – e não tiveram superiores em força e influência no púlpito. Spurgeon foi o pregador mais popular e eficaz do século dezenove, que se dirigia de semana a semana a cinco mil ouvintes em seu tabernáculo, e milhões de leitores através de seus sermões impressos em muitas línguas. Nem devemos nos esquecer de que alguns dos mais devotos católicos romanos foram agostinianos ou jansenistas.

 

Por outro lado, ninguém é salvo mecanicamente ou pela força, mas por meio da fé, gratuitamente, aceitando o dom de Deus. Isto implica a força contrária de rejeitar o dom. Aceitar não é nenhum mérito, rejeitar é ingratidão e culpa. Todos os pregadores calvinistas apelam à responsabilidade do homem. Eles oram como se tudo dependesse de Deus; e, no entanto pregam e agem como se tudo dependesse do homem. E a Igreja é instruída a enviar o evangelho a toda criatura. Oramos pela salvação de todos os homens, mas não pela perda de um único ser humano. Cristo intercedeu até mesmo por seus assassinos na cruz.

 

Aqui, então, está uma dificuldade prática. O decreto da reprovação não pode ser feito objeto de oração ou pregação, e este é um argumento contra ele. A experiência confirma a eleição, mas repudia a reprovação.

 

O ARGUMENTO LÓGICO.

 

O argumento lógico para a reprovação é que não pode haver nenhum positivo sem um negativo; nenhuma eleição de alguns sem uma reprovação de outros. Isto é verdadeiro por lógica dedutiva, mas não por lógica indutiva. Há graus e fases de eleição. Deve haver uma ordem cronológica na história da salvação. Todos são chamados mais cedo ou mais tarde; alguns na sexta, outros na nona, outros na décima primeira hora, de acordo com a providência de Deus. Aqueles que aceitam a chamada e perseveram na fé estão entre os eleitos (1Pe 1.1; 2.9). Aqueles que a rejeitam se tornam reprovados por sua própria incredulidade, e contra o desejo e vontade de Deus. Não há nenhum decreto antecedente de reprovação, mas somente um ato judicial de reprovação em consequência do pecado do homem.

 

A lógica é uma espada de duas pontas. Ela pode levar das premissas predestinacionistas à conclusão de que Deus é o autor do mal, o que o próprio Calvino rejeita e abomina como blasfêmia. Ela pode também levar ao fatalismo, panteísmo ou universalismo. Devemos parar em algum lugar em nosso processo de raciocínio, ou sacrificar uma parte da verdade. A lógica, deve ser lembrado, lida somente com categorias finitas, e não pode compreender verdade infinita. O Cristianismo não é um problema lógico ou matemático, e não pode ser reduzido às limitações de um sistema humano. Ele está acima de qualquer sistema particular e abrange as verdades de todos os sistemas. Está acima da lógica, todavia não é ilógico; como a revelação está acima da razão, todavia não contra a razão.

 

Não podemos imaginar Deus exceto como um ser onisciente e onipotente, que da eternidade previu e, de alguma forma, também preordenou todas as coisas que acontecem em seu universo. Ele previu o que preordenou, e preordenou o que previu; sua presciência e preordenação, sua inteligência e vontade são coeternas, e devem harmonizar-se. Não há nenhuma sucessão de tempo, nem antes nem depois no Deus eterno. A queda do primeiro homem, com seus efeitos sobre todas as futuras gerações, não pode ter sido um acidente que Deus, como um espectador passivo e neutro, simplesmente permitiu que acontecesse quando ele podia tão facilmente ter evitado. Ele deve de alguma forma ter preordenado a queda, como um meio para um fim maior, como uma condição negativa para o maior bem. Até agora a força do raciocínio, baseado na crença em um Deus pessoal, vai até o extremo do supralapsarianismo calvinista, e até mesmo além dele, à própria margem do universalismo. Se abandonarmos a ideia de um Deus autoconsciente, pessoal, a razão nos forçaria ao fatalismo ou panteísmo.

 

Mas há uma lógica da ética assim como da metafísica. Deus é santo assim como todo-poderoso e onisciente, e por essa razão não pode ser o autor do pecado. O homem é um ser tanto moral quanto intelectual, e as afirmações de sua constituição moral são iguais às suas afirmações de sua constituição intelectual. A consciência é um fator tão poderoso quanto à razão. O crente mais rígido na soberania divina, se cristão, não pode se livrar do senso de responsabilidade pessoal, apesar de incapaz de reconciliar as duas. A harmonia jaz em Deus e na constituição moral do homem. Elas são os dois lados complementares de uma verdade. Paulo as une em uma sentença: “Efetuai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13). O problema, entretanto, chega dentro do alcance da solução possível, se distinguirmos entre soberania como um poder inerente e o exercício da soberania. Deus pode limitar o exercício de sua soberania para dar lugar à livre ação de suas criaturas. É por seu decreto soberano que o homem é livre. Sem essa autolimitação ele não poderia exortar os homens ao arrependimento e à fé. Aqui, novamente, a lógica calvinista deve curvar-se ou partir-se. Estritamente executada, ela transformaria as exortações de Deus aos pecadores em uma solene zombaria e cruel ironia.

 

O ARGUMENTO DA ESCRITURA.

 

Calvino, embora um dos mais hábeis lógicos, se preocupou menos com a lógica do que com a Bíblia, e foi sua obediência à Palavra de Deus que o induziu a aceitar o decretam horribile contra seu desejo e vontade. Seu julgamento é da maior importância, pois ele não teve ninguém superior, e dificilmente alguém à altura, em conhecimento pleno e sistemático da Bíblia e em discernimento exegético.

 

E aqui devemos espontaneamente admitir que um número considerável de passagens, especialmente no Velho Testamento, favorecem um duplo decreto até o limite do extremo supralapsarianismo; sim, eles vão além do sistema calvinista, e parecem fazer do próprio Deus o autor do pecado e do mal. Veja Êx 4.21; 7.13 (repetidamente citado sobre o endurecimento do coração do Faraó por Deus); Is 6.9, 10; 44.18; Jr 6.21; Am 3.6 (“Sucederá qualquer mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?”); Pv 16.4; Mt 11.25; 13.14, 15; Jo 12.40; Rm 9.10-23; 11.7, 8; 1Co 14.3; 2Ts 2.11; 1Pe 2.8; Jd 4 (“que já desde há muito estavam destinados para este juízo”).[3]

 

A defesa da reprovação é o nono capítulo de Romanos. Não foi acidental que Calvino elaborou e publicou a segunda edição de suas Institutas simultaneamente com seu Comentário sobre Romanos, em Estrasburgo, em 1539.

 

Há especialmente três passagens em Rm 9, que em seu sentido literal favorecem o Calvinismo extremado, e são assim explicadas por alguns dos mais rigorosos comentaristas gramaticais dos tempos modernos (como Meyer e Weiss).

 

(a) 9.13: “Amei a Jacó, e aborreci a Esaú,” citado de Ml 1.2, 3. Esta passagem, se a tomarmos num sentido literal ou antropopático, não tem nenhuma referência com o destino eterno de Jacó e Esaú, mas com a posição representativa na história da teocracia. Isto remove a principal dificuldade. Esaú recebeu uma bênção temporal de seu pai (Gn 27.39, 40), e se comportou gentil e generosamente com seu irmão (33.4); ele provavelmente se arrependeu da estupidez de sua juventude de vender sua primogenitura,[4] e pode estar entre os salvos, assim como Adão e Eva – os primeiros entre os perdidos e os primeiros entre os salvos.

 

Além disso, o significado rígido de um ódio positivo parece impossível na natureza do caso, visto que contradiria tudo que conhecemos da Bíblia dos atributos de Deus. Um Deus de amor, que nos comanda a amar todos os homens, até os nossos inimigos, não pode odiar uma criança antes de seu nascimento, ou qualquer de suas criaturas feitas à sua própria imagem. “Pode uma mulher esquecer-se de seu filho de peito,” diz o Senhor, “de maneira que não se compadeça do filho do seu ventre? Mas ainda que esta se esquecesse, eu, todavia, não me esquecerei de ti” (Is 49.15). Esta é a concepção do profeta das afáveis misericórdias de Deus. Quanto mais deve ser a concepção do Novo Testamento? A palavra ódio deve, por essa razão, ser entendida como uma expressão hebraística forte para amar menos ou recusar; como em Gn 29.31, onde o texto original diz, “Léia era odiada” por Jacó, isto é, amada menos do que Raquel (comp. v. 30). Quando nosso Salvador diz, Lc 14.26: “Se alguém vier a mim, e não odiar a pai e mãe, a mulher e filhos, a irmãos e irmãs, e ainda também à própria vida, não pode ser meu discípulo,” ele não quer dizer que seus discípulos devem violar o quinto mandamento, e agir de forma contrária à sua orientação: “Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44), mas simplesmente que devemos preferir a ele acima de tudo, até da própria vida, e devemos sacrificar o que quer que venha em conflito com ele. Este significado é confirmado pela passagem paralela, Mt 10.37: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim”

 

(b) Rm 9.17. Paulo traça o endurecimento do coração do Faraó à intervenção de Deus, e até então faz Deus o responsável pelo pecado. Mas este era um ato judicial de punir o pecado com pecado; pois Faraó tinha primeiro endurecido seu próprio coração (Êx 8.15, 32; 9.34). Além disso, esta passagem não tem nenhuma referência com o destino futuro do Faraó mais do que a passagem sobre Esaú, mas ambas se referem aos seus lugares na história de Israel.

 

(c) Em 9.22 e 23, o apóstolo fala de “vasos da ira, preparados para a perdição,” e “vasos de misericórdia, que (Deus) preparou para a glória.” Mas a diferença dos verbos, e as diferenças entre a passiva (ou média) na primeira frase e a ativa na segunda é mais significante, e mostra que Deus não tem nenhuma interferência direta na destruição dos vasos da ira, que é devido à sua autodestruição; o particípio perfeito denota o resultado de um processo gradual e um estado de maturidade para a destruição, mas não um propósito divino. Calvino é um exegeta bom demais para negligenciar esta diferença, e verdadeiramente admite sua força, embora tentasse enfraquecê-la.

 

“Eles observam,” ele diz de seus oponentes, “que não é dito sem propósito, que os vasos da ira são preparados para a destruição, mas que Deus preparou os vasos de misericórdia; visto que por este modo de expressão, Paulo atribui a Deus o louvor da salvação, e lança a culpa da perdição naqueles que por suas escolhas a obtêm para si mesmos. Mas embora concorde com eles que Paulo suaviza a asperidade da primeira frase pela diferença de fraseologia; todavia não é consistente transferir a preparação para a destruição a qualquer outra coisa que não o secreto conselho de Deus, que também é afirmado bem antes no contexto, ‘que Deus levantou a Faraó, e quem ele quer ele endurece.’ De onde segue que a causa do endurecimento é o conselho secreto de Deus. Por essa razão, sustento, o que é observado por Agostinho, que quando Deus transforma lobos em ovelhas, ele os renova pela mais poderosa graça para conquistar sua obstinação; e por essa razão os obstinados não são convertidos, pois Deus exerce, não aquela graça mais poderosa, da qual não está destituído se escolhesse mostrá-la.”[5]

 

O ENSINO DE PAULO DA EXTENSÃO DA REDENÇÃO.

 

Qualquer que seja a opinião que possamos tirar destas difíceis passagens, devemos lembrar que o nono capítulo de Romanos é somente uma parte da filosofia da história de Paulo, revelada nos capítulos 9-11. Enquanto o nono capítulo estabelece a soberania divina, o décimo capítulo afirma a responsabilidade humana, e o décimo primeiro avança para a solução futura do misterioso problema, a saber, a conversão da plenitude dos gentios e a salvação de todo o Israel (11.25). E ele encerra toda a discussão com a gloriosa sentença: “Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos” (32). Esta é a chave para o entendimento, não apenas desta seção, mas de toda a epístola aos Romanos.[6]

 

E isto está em harmonia com todo o espírito e objetivo desta epístola. É mais fácil fazê-la provar um sistema de universalismo condicional do que um sistema de particularismo dualístico. O próprio tema, 1.16, declara que o evangelho é o poder de Deus para salvação, não de uma classe particular, mas de “todo aquele” que crê. Ao traçar um paralelo entre o primeiro e o segundo Adão (5.12-21), ele representa o efeito do último como igual em extensão, e maior em intensidade, do que o efeito do primeiro; enquanto no sistema calvinista deveria ser menos. Não temos direito de limitar “os muitos” e o “todos” em uma frase, e a tomarmos literalmente na outra. “Porque, se pela ofensa de um só [Adão], a morte veio a reinar por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão em vida por um só, Jesus Cristo. Portanto, assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação e vida. Porque, assim como pela desobediência de um só homem muitos [isto é, todos] foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um muitos [todos] serão constituídos justos” (5.17-19).[7] O mesmo paralelo, sem qualquer restrição, é mais brevemente expressado na passagem (1Co 15.22): “Como em Adão todos morrem, do mesmo modo em Cristo todos serão vivificados;” e de uma forma diferente em Rm 11.32 e Gl 3.22, já citadas.

 

Estas passagens contêm, resumidamente, a teodiceia de Paulo. Elas dissipam a obscuridade do nono capítulo de Romanos. Elas excluem todas as limitações do plano e intenção de Deus a uma classe particular; elas não ensinam, de fato, que todos os homens serão na verdade salvos – pois muitos rejeitam a oferta divina, e morrem na impenitência, – mas que Deus sinceramente deseja e verdadeiramente provê salvação para todos. Quem quer que seja salvo, é salvo pela graça; quem quer que seja perdido, é perdido por sua própria culpa da incredulidade.

 

A OFERTA DA SALVAÇÃO.

 

Ainda resta, é verdade, a grande dificuldade que a oferta de salvação é limitada neste mundo, até onde sabemos, a uma parte da raça humana, e que a grande maioria passa por este mundo sem qualquer conhecimento do Cristo histórico.

 

Mas Deus deu a todo homem a luz da razão e da consciência (Rm 1.19; 2.14, 15). O Logos Divino “alumia a todo homem” que vem ao mundo (Jo 1.9). Deus nunca deixou de “dar testemunho” de si mesmo (At 14.17). Ele lida com suas criaturas de acordo com a medida de sua capacidade e oportunidade, se têm um, cinco ou dez talentos (Mt 25.15 sqq.). Ele “não faz acepção de pessoas; mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação, o teme e pratica o que é justo” (At 10.35).

 

Não podemos, então, nutrir ao menos uma esperança generosa, se não uma crença firme, que um Deus de infinito amor e justiça irá receber em seu reino celestial todos aqueles que morrem inocentemente ignorantes da revelação cristã, mas em estado de boa vontade ou disposição para o evangelho, de modo que eles aceitariam agradecidamente se ele lhes fosse oferecido? Cornélio estava nessa condição antes de Pedro entrar em sua casa, e ele representa uma multidão que ninguém pode enumerar. Não podemos saber e medir as operações secretas do Espírito de Deus, que trabalha “quando, onde, e como quer.”

 

Certamente, aqui está um ponto onde o rigor da velha ortodoxia, se católica romana, ou luterana, ou calvinista, deve ser moderada. E o sistema calvinista admite uma expansão mais facilmente do que o tipo de ortodoxia eclesiástica e sacramental.

 

O AMOR GERAL DE DEUS POR TODOS OS HOMENS.

 

Esta doutrina de uma vontade e provisão divina de uma salvação universal, sob a única condição de fé, é ensinada em muitas passagens que não admitem nenhuma outra interpretação, e que devem, por essa razão, decidir toda esta questão. Pois é uma regra estabelecida em hermenêutica que passagens obscuras devem ser explicadas por passagens claras, e não vice versa. Tais passagens são as seguintes: –

 

“Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus; convertei-vos, pois, e vivei” (Ez 18.32, 23; 33.11). “E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim” (Jo 12.32). “Porque Deus amou o mundo” (isto é, toda a humanidade) “de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). “Deus nosso Salvador deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4).[8] “Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação a todos os homens” (Tt 2.11). “O Senhor é longânimo para convosco, não querendo que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se” (2Pe 3.9).[9] “Jesus Cristo é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos (os pecados de) de todo o mundo” (1Jo 2.2). É impossível declarar a doutrina de uma expiação universal mais claramente em tão poucas palavras.[10]

 

A estas passagens devem ser acrescentadas as exortações divinas ao arrependimento, ao lamento de Cristo sobre os habitantes de Jerusalém que “não quiseram” vir a ele (Mt 23.37). Estas exortações são insinceras ou sem sentido, se Deus não quer que todos os homens sejam salvos, e se os homens não têm a capacidade de obedecer ou desobedecer a voz. O mesmo está implícito no comando de Cristo para pregar o evangelho a toda a criatura (Mc 16.15), e para fazer discípulos de todas as nações (Mt 28.19).

 

É impossível restringir estas passagens a uma classe particular sem fazer violência à gramática e ao contexto.

 

A única forma de escape é a distinção entre uma vontade revelada de Deus, que declara sua disposição para salvar todos os homens, e uma vontade secreta de Deus, que pretende salvar somente alguns homens.[11] Agostinho e Lutero fizeram esta distinção. Calvino a usa para explicar 2Pe 3.9, e aquelas passagens do Velho Testamento que atribuem arrependimento e mudanças ao Deus imutável.

 

Mas esta distinção destrói o sistema que se pretende defender. Uma contradição entre intenção e expressão é fatal à veracidade, que é a fundação da moralidade humana, e deve ser um atributo essencial da Divindade. Um homem que diz o inverso do que pretende é chamado, em linguagem clara, de hipócrita e mentiroso. Não ajuda a questão quando Calvino diz, reiteradamente, que não há duas vontades em Deus, mas somente duas formas de falar, adaptadas à nossa fraqueza. Nem remove a dificuldade quando ele nos exorta a confiar na vontade revelada de Deus antes que meditar em sua vontade secreta.

 

A maior, a mais profunda, a mais confortante expressão na Bíblia é a expressão, “Deus é amor,” e o maior fato na história do mundo é a manifestação daquele amor na pessoa e obra de Cristo. Essa expressão e este fato são a soma e substância do evangelho, e a única sólida fundação da teologia cristã. A soberania de Deus é reconhecida por judeus e muçulmanos assim como pelos cristãos, mas o amor de Deus é revelado somente na religião cristã. É a essência íntima de Deus, e a chave para todos os seus caminhos e obras. É a verdade central que irradia luz sobre todas as outras verdades.

 

Tradução: Paulo Cesar Antunes

 


[1] Paradiso, XX. 130-138: –

“O predestinazion, quanto rimota

È la radice tua da quegli aspetti

Che la prima cagion non veggion tota!

“E voi, mortali, tenetevi stretti

A giudicar; chè noi, che Dio vedemo,

Non conosciamo ancor tutti gli eletti:

“Ed ènne dolce così fatto scemo,

Perchè il ben nostro in questo ben s’affina,

Che quel che vuole Dio, e noi volemo.”

[2] Comentários sobre Rm 9.14: “Est prædestinatio Dei vere labyrinthus, unde hominis ingenium nullo modo se explicare queat.”

[3] A última passagem é freqüentemente citada em favor de um decreto da reprovação, mas o verbo progegrammevnoi está incorretamente traduzido como “ordenados” na E. V. Progravfw significa escrever antes, e se refere aos escritos anteriores, a saber, as Escrituras do Velho Testamento. Calvino corretamente traduz “praescripti in hoc judicium,” mas a refere, metaforicamente, ao livro do conselho divino “aeternum Dei consilium liber vocatur.”

[4] Isto está implícito em Hb 12.17, se aplicarmos metanoia ao arrependimento posterior de Esaú (Calvin, Bleek), ou a uma mudança de opinião em Isaque (Beza, Weiss).

[5] Inst.Veja Mitchell, Minutes of the Westminster Assembly, pp. 152 sqq.; Schaff, Creeds, I. 770 sq. III. cap. XXII. 1. Em seu Comentário sobre Rm 9.22, 23, ele ignora esta distinção e explica kathrtismevna, “abandonados e apontados para destruição, criados e formados para este fim” (devota et destinata exitio: sunt enim vasa iræ, id est in hoc facta et formata, ut documenta sint vindictæ et furoris Dei). Esta é a exposição supralapsariana extrema. Mas outros exegetas reformados completamente reconhecem a diferença de fraseologia. Foi pressionado pelos membros da Assembléia de Westminster que estavam de acordo com o universalismo hipotético da escola de Saumur de Cameron e Amyrauld. “Os não-eleitos,” disse o Dr. Arrowsmith, “são ditos ser preparados para a destruição que seus pecados trouxeram sobre eles, mas não por Deus.”

[6] “Das ganze Summarium und der herrliche Schlussstein des ganzen bisherigen BrieftheilsA frase “judeus e gentios” não ensina, de fato, a aceitação forçada da misericórdia por todos, mas, em qualquer caso, a universalidade do propósito e intenção divinos. Meyer vê nesta passagem um argumento exegético conclusivo contra um decretum reprobationis..” Weiss na 6a. ed. de Meyer sobre Romanos (p. 555). Godet: “C’est ici comme le point final appose à tout ce qui précede; ce dernier mot rend compte de tout le plan de Dieu, dont les phases principales viennent d’être esquissées.”

[7] Infelizmente a A. V. suprime a força do paralelo no quinto capítulo de Romanos ao negligenciar o artigo definido antes depolloiv. “Os muitos” do original é oposto ao “um,” e é equivalente ao “todos;” enquanto “muitos” seria oposto a “poucos.” A Revised Version de 1881 corrige estes erros.

[8] Calvino explica “todos os homens” como sendo homens de todas as classes e condições (“de hominum generibus, non singulis personis”). Veja seu Comentário sobre 1Tm 2.4, e seu sermão sobre a passagem. Mas o apóstolo enfatiza “todos os homens” com referência à oração por “todos os homens,” que ele comanda no versículo 1, e que não pode ser limitada.

[9] Calvino arbitrariamente explica esta passagem da “voluntas Dei quae nobis in evangelio patefit,” mas não “de arcano Dei consilio quo destinati sunt reprobi in suum exitium.”

[10] Calvino entende “totus mundus” nesta passagem como sendo “tota ecclesia!” Isto é tão impossível quanto a restrição do “mundo,” Jo 3.16, aos “eleitos.” Ele menciona, entretanto, também uma melhor explicação, que Cristo morreu “sufficienter pro toto mundo, sed pro electis tantum efficaciter.”

[11] Vários termos para a distinção: voluntas revelata e voluntas arcana; voluntas signi e voluntas beneplaciti; voluntas universalis e voluntas specialis; verbum externum et verbum internum. O texto-prova freqüentemente citado, Dt 29.29, ensina uma distinção, mas não uma contradição, entre as coisas secretas e as coisas reveladas de Deus.